segunda-feira, 14 de maio de 2012


“Duas semanas depois morreu, com falência múltiplas dos órgãos, devido a uma infecção resultada por um ferimento que tivera no útero, acompanhada por um aborto espontâneo, ocorrido quando ainda estava se recuperando no hospital. Os médicos haviam comentado isso a ela. Disseram que o corte estava curado. Foi a única coisa que ela não me falou. A infecção iniciou e a matou em menos de vinte e quatro horas.
Ela me deixara tudo o que tinha. Não entendi o porquê e assim passei até que li uma carta sua, entregue por seu advogado.

Prezado amigo!

É bem provável estar lendo esta carta sem ainda entender o que aconteceu. Eu mesma só fui acreditar depois de uns dois dias de muito sofrimento. Não pude lhe falar nada com medo de que não me fosse acreditar. Falei dos meus sonhos, dos meus pais, irmãos. Apenas não lhe falei que estavam preparando a minha nova casa, era o que diziam. Eu ficava sem entender se deveria comprar uma nova casa, ou coisa do gênero. Mas um dia, depois de um sono muito longo, porém muito profundo, descobri que iria morrer. Era o que eles diziam sobre estarem preparando minha nova casa. Conversei com meus pais. Eles me apresentaram pessoas da família que eu nunca tinha visto, mas que me davam uma tranqüilidade grande de mais para não acreditar. Então, um dia falaram que eu deveria procurar um advogado com a sua ajuda, preparar meu testamento e colocá-lo como meu herdeiro universal, justificando os laços de sentimentos que nos uniam. Já que os médicos tinham atestado a minha lucidez, quando fui falar com um juiz para retomar a minha guarda eu aproveitei para que ele me orientasse sobre o meu testamento, sobre os meus mais recentes desejos. Conversamos e orientou que eu os registrassem em cartório. Assim estava me preparando para reencontrar minha família.

Peço que consiga um advogado para cuidar no meu amigo, ele é uma pessoa boa, o irmão mais velho é que o levou a cometer o que cometeu. Não precisa você se envolver nas questões ligadas a eles. Cada um de nós tem que ser responsável pelo que faz de bom ou de ruim. Apenas peço que arranje um advogado, para que ele possa ter uma segunda chance, todos nós temos.

Ter estado ao seu lado foi uma segunda chance. Eu queria morrer quando você me gritava na parte de baixo da casa. O que tinha vivido para mim era uma violência insuportável. Presa a cama eu desejava sangrar até morrer. Pedi ao meu pai que aceitasse meu namoro com Júnior, que ele era um cara legal, apenas jovem como eu e ainda teríamos que aprender muito. No dia do meu aniversário, para não passarmos a sós, ele permitiu que Júnior viesse e ainda trouxesse o irmão que eu também não conhecia. Tudo começou muito bem, com muita educação por parte do irmão de Júnior. Nós brindamos, tomamos um pouco de vinho e logo depois o irmão se revelou um cara violento. Obrigou Júnior a amarrar meu pai, pois se não ele me mataria ali na frente de todos e depois foi a tristeza que você deve imaginar.

Sua presença na casa falando de como estava meu pai foi inicialmente, assustadora. Não tinha ouvido muito o irmão do Júnior falar, e pensei que ele tinha voltado para me violentar mais. Como ele sabia onde eu estava, fiquei em dúvida. Quando você disse que iria embora buscar a polícia eu acreditei que fosse alguém tentando me auxiliar. Então gritei por socorro e você apareceu como luz, no fim da escuridão, trazendo esperanças a minha vida. Seu nervosismo e sua tentativa de me acalmar, mostraram quanto estava desesperado com tudo aquilo. Fechava os olhos pedindo para que você se acalmar e pudesse me ajudar melhor, mais você achava que eu estava morrendo e começava a falar coisas engraçadas como seu nome completo, que adorava comer frango cozido com muitos legumes, ouvir muitos estilos de música, cuidar de crianças, e eu ficava perdida em meus pensamentos. Só a dor que sentia fazia me concentrar. Quando você mexeu no guarda-roupa e depois me trouxe um lençol eu senti o quanto você seria importante em minha segunda chance na vida. Meu ódio pelo que tinha vivido foi se transformando. Com as noites passadas naquele hospital deixei de lado a ideia do sofrimento cometido contra mim e meu pai, pensando em poder lhe conhecer melhor e lhe agradecer. Saber quem era aquela pessoa que havia surgido na minha vida. Passei a querer viver novamente. Sempre que retornava consciente de onde estava eu perguntava por meu pai e por você. Não tinha respostas objetivas, apenas que você voltaria e que meu pai ainda estava em tratamento, porém o efeito dos remédios tirava a oportunidade de revê-los logo, meu pai e você. Quando o vi ao meu lado na cama do hospital sabia que meu pai não tinha resistido e uma tristeza se abateu sobre mim. Você passou naquele instante a ser a única pessoa que eu tinha na vida, meu único sentido para continuar existindo. Foi maravilhoso poder continuar lutando para estar viva. Uma linda experiência de amor. Passei então a sonhar com meus pais.

Depois dos sonhos iniciais tive sonhos mais profundos e passei a sonhar mais ainda com minha família. Não sabia o que significava aquilo e um dia perguntei se eu os veria logo. Todos pareciam sorrir e continuei sem entender. Novos sonhos e as mesmas perguntas. Então eles me disseram o dia e as horas exatas em que eu partiria para reencontrá-los.

Tomei um grande susto, porém em meu sonho conversei com meus pais por um longo tempo e acreditei que deveria deixá-lo e partir.

Sinto muito por ter que ser assim, mas você ainda tem sua história para viver e superar, controlar seus desejos, suas aflições, seus medos, tudo o que fizer será uma escolha difícil, porém necessária.

Obrigada por tudo! Partirei logo.” “

Trecho do conto a Jovem Sahra de Teddy Williams

segunda-feira, 7 de maio de 2012





Rosas e Livros
Teddy Williams

Cresci em meio à pobreza da comunidade e família. Meus pais eram o que eu aprendi a denominar hoje, com muita dor em meu peito, miseráveis. Assim fomos chamados um dia. Vivíamos de favor ou ajudados por esmolas. Muitas vezes éramos levados, por nosso pai, até a pista mais próxima ou perto de algum mercado, onde ele nos deixava pedindo esmolas, com a obrigação de sempre trazermos dinheiro. Apanhávamos muito, quando retornávamos com pouco. Ele bebia sempre. Ficávamos até o cair da noite, pedindo. O corpo doía. Fedíamos e quase sempre adoecíamos. Acredito que um de nossos irmãos morreu por isso. Ele começou a ter convulsões. Lembro como se fosse hoje, logo depois estava calado, para sempre! Deixamos de ser sete, em menos de dois anos. Passamos a ser quatro. Eu tinha seis anos, minha irmã cinco, o pai vinte e cinco e a mãe vinte e um. Era um tempo de muita dor. Olhávamos as outras crianças passeando, brincando, sorrindo... Queríamos sair de onde estávamos: das calçadas, em meio ao calor. Sair das portas dos supermercados, no vai e vem dos clientes, que ainda hoje não somos. Das portas dos bancos, sob os olhares assustados dos que entravam. Sempre que isso acontecia, de sairmos passeando como crianças normais, nosso pai descobria e nos batia. Parece até que ficava próximo, nos observando. Depois de apanharmos, secarmos as lágrimas, engolirmos o choro, ele dizia para nunca sairmos de onde estávamos e nunca sonharmos. Nada de sonhos.

Demoramos pouco para aprender essa lição, tão simples. Passamos muita fome, frio e medo. Nossa comunidade vez por outra era acordada ao som de tiros, sirenes de carros de polícia e helicópteros. Quase perdemos nossa casa, ou melhor, o lugar onde deitávamos. Quase não dormíamos, era uma mistura de pedaços de papelão, madeiras, jornais e sacos. Nossa comunidade cheirava mal. Alguns até morriam de morte natural. Muitos nasciam, sabíamos pelos choros dos pequeninos e os gritos dos grandes.

Um dia, já quase no fim da tarde, um grupo se aproximou da gente e ofereceu lanches, perguntando por nossos pais ou responsáveis. Disse que chegariam logo, foram ali, bem ali... menti. Estávamos em frente a um supermercado desses grandes, pedindo esmolas. Do outro lado da rua tinha uma praça, enorme, onde nunca tínhamos sonhado em ir. Lá as crianças brincavam. Os adultos corriam e velhos jogavam baralhos, damas ou apenas caminhavam, quando não estavam sentados olhando ao longe. Eu gostava de imaginar (não sonhar) o que os pais falavam para as crianças. Meus irmãos e eu nunca tínhamos sorrido, eu não lembrava. As outras crianças sorriam caminhando de mãos dadas com seus pais. Nem percebi direito, rapidamente outro grupo foi se organizando na praça. Uma mulher de saia colorida, blusa branca, chapéu preto, sentou-se e abriu algumas caixas. As pessoas foram se aproximando, chamadas por uma canção que eu não sabia de onde vinha. Por um instante pensei nas festas em que o tal Papai Noel aparece. Até nossos pais surgiram para comer os pães e tomar refrigerantes que ainda estava sendo distribuído. Fomos convidados para irmos à praça. Disseram que ia ser legal, tudo de graça: brincadeiras, livros, leituras, canções... Colocaram a gente bem perto da mulher com o chapéu preto. Eles tinham quase as mesmas roupas, os mesmos chapéus. Depois de tudo arrumado, a mulher deu boa noite e começou a cantar. Cantou, cantou e sorriu. Cantou, sorriu e parou. Depois pediu silêncio com uma voz baixinha e o dedo nos lábios. Ficamos calados e ela foi dizendo assim: era uma vez, dentro de uma imensa e linda floresta, um som que mais parecia um sorriso de criança... Com essas palavras, como em um passe de mágica, continuei atento, até meu pensamento ficou calado e fui indo, entrando na floresta e vendo... Talvez isso tivesse acontecido com meus pais e todos que estavam ali, pois o silêncio foi total, nem o barulho dos carros se ouvia na rua... Imaginei (não era sonho), o lugar que ela descrevia. A cada palavra que falava, mesmo sem eu entender o significado de quase todas, acreditei compreender o que ela queria dizer. Seus gestos eram leves. Eu acompanhava seus dedos, suas mãos... Ela falava dos grandes e dos pequenos rios. Das longas árvores, maiores que os maiores dos prédios ao redor daquela praça. Falava de lugares com pessoas diferentes: suas casas, suas canções, seus instrumentos musicais. Começou e foi assim, por um bom tempo, contando uma longa e linda história!

Ao meu lado, mais de trinta crianças acompanhadas de seus pais. Todos ali, atentos à contadora de histórias e encantados. Ela falou de alegrias e esperanças. Das dificuldades que enfrentamos na vida e suas belezas. Quando parou, disse que a esperança vem de longe, de muito longe e está dentro de nós. Que toda a natureza sempre comemora nossos passos, pois assim é preciso. Todos aplaudiram, até meus pais, que só reclamam da vida, choravam. Chorei de tanta alegria. Novamente eles cantaram e nós acompanhamos. Fomos convidados a olhar os livros, colocados em cima de panos coloridos. Era a primeira vez que eu os via assim de perto. Ela mostrou uns e disse que ali estavam as histórias que contou. Presenteou a todos com rosas e livros. Era abril. Falou de escolas, bibliotecas, centros culturais, de árvores, praças, lagoas... Lugares onde meus pais poderiam ir e nos levar.

Deitamos maravilhados pelas histórias que ouvimos e, para nossa surpresa, pela primeira vez, nossa mãe leu o que tinha nos livros, com voz suave e o rosto transformado. Ficamos calados. Até nosso pai parecia outro homem. Eu nunca tinha visto minha mãe ler nada. Chorei muito, não sei por que, mas era lindo. Pedi para ela contar outra história e assim adormeci e sonhei. Quando acordei, minha mãe cantava, meu pai estava de barba feita e cabelos penteados. Senti que algo havia acontecido. Não mendigamos mais depois daquele dia. Durante noites, antes de dormirmos, ela continuava a ler. Depois de alguns dias foram aparecendo outras pessoas da comunidade e o silêncio era total para ouvi-la. Ela foi convidada a contar histórias em outros barracos: tomávamos café, comíamos pão, bolacha. Outras pessoas também começaram a contar histórias e a comunidade foi se transformando, em meio a tantos problemas que ainda existiam. Um grupo passou a trazer livros, revistas, jornais. Um dia, minha mãe disse a todos: as histórias estão no mundo, em cada um de nós, nos livros e em nossas vidas. É preciso aprender a ouvir, a ver, a sentir e a ler, para poder contar, transmitir, compartilhar e encantar. Depois dessas palavras ela disse que nós deveríamos começar a estudar. Já estava passando da hora de dar um rumo novo as nossas vidas. Foi assim que ela falou. Eu adorei o que ouvi, mesmo só entendendo hoje, depois de sete anos, o que significavam aquelas palavras.

A Maior Flor do Mundo | José Saramago

Criança Não Trabalha - DVD Pé com Pé

sábado, 5 de maio de 2012